Entre o Econegócio e o Ambientalismo dos afetos e cosmovisões – Disputas de visões da Natureza no Parque São Bartolomeu

Em Fevereiro de 2021, comunidades que vivem no entorno do Parque São Bartolomeu, no Subúrbio Ferroviário de Salvador, foram surpreendidas com a notícia de que o Parque que frequentam e convivem estaria numa lista de privatização, e com isso, o risco de ver ameaçado o seu direito de usufruto de um lugar tão especial em suas vidas. Isto porque  o Parque fazia parte da lista de mais de 26 unidades de conservação públicas destinadas a serem geridas pela iniciativa privada através do Programa de Concessão de Parques, projeto nacional dirigido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES): uma normativa que permite a empreendedores privados assumirem operações comerciais dentro de Áreas de Conservação. A natureza, sagrada e cuidada pelas comunidades, se tornaria, sob a égide dessa regulamentação, objeto do Econegócio. 

Junto da notícia da concessão para empresas, vieram justificações de interesse supostamente “ecológicos, não econômicos”. Entretanto, o medo de quem convive com a natureza desde outras perspectivas no seu entorno era que a verdadeira intenção é a de transformar a natureza em um espaço de lucro. No lugar das amplas relações de afetos com a natureza, as comunidades foram transformadas em obstáculos para o desenvolvimento e para a própria “preservação”. 

De acordo com documento disponibilizado pelo BNDES explicando a iniciativa, trata-se de uma concessão de serviços e atrativos turísticos em áreas naturais protegidas, segundo a qual a concessão serve como forma de preservação ambiental, pois limita o número de operadores na área de conservação, além de estabelecer metas, penalidades ambientais e restrições ao uso da área. A lógica por trás desse modelo de conservação é de que o verdadeiro obstáculo contrário à “preservação ambiental” é o ser humano. No entanto, não é qualquer ser humano que é colocado como obstáculo, mas sim as comunidades locais, que a partir desse tipo de projeto são privadas do acesso, uso e convivência livre com um espaço onde historicamente sempre puderam acessar. Segundo o documento do BNDES:

“As dificuldades da aplicação estrita desse mecanismo, em geral, dizem respeito à resistência da população local, que em muitas dessas áreas já vinha operando sem qualquer regulamentação e/ou amparada em permissões e outros tipos de contratos, em geral com menores exigências quanto ao aspecto da preservação ambiental e ainda a questões relacionadas à regulamentação fundiária das UCs”

Essa narrativa de um negócio tem como intuito construir a ideia de que as populações locais são causadoras da degradação ambiental que acontece nos parques. Enquanto isso, as empresas e órgãos responsáveis pela concessão assumem o local de “salvadores da natureza”, pois trazem a “sustentabilidade”, apresentando formas tecnológicas de “compatibilizar o desenvolvimento com o meio ambiente”, como destaca o geógrafo Carlos Walter Porto-Gonçalves (2021). Com a disseminação desse tipo de narrativa, as vozes das comunidades são abafadas, seus modos de convivência com o território são desrespeitados, e cada vez mais abre-se espaço para a crença de que a única possibilidade de relação com a natureza, possível na atualidade, é através do econegócio. Não há possibilidade de uma relação não econômica, sem interesse econômico, mas imbuída de outros afetos. Entretanto, as mobilizações que se seguiram à notícia da privatização revelam que a realidade da comunidade do Parque São Bartolomeu conta outra história. 

Passado e presente de São Bartolomeu

O Parque São Bartolomeu é um espaço em que as temporalidades de passado, presente e futuro convivem como forma de sustentação de sua própria natureza. Na dimensão histórica, constituindo a dimensão da temporalidade do passado que conforma a existência atual, o parque teria sido morada dos Tupinambás. Posteriormente, passou a ser sede do Quilombo do Urubu, onde viveu Zeferina, mulher escravizada que foi protagonista da Batalha de Pirajá. Nas palavras da Ialorixá Nívia Luz, do Terreiro Ilé Asé Oyá, localizado no entorno do parque na região de Pirajá, “a luta do São Bartolomeu é uma luta antiga”, diz ela: “A minha família já tem tempo de morada nesse lugar, há mais de 40 anos. Morar nesse lugar foi um chamado espiritual”.

É essa dimensão espiritual que costura os laços do passado com o presente, e projeta o futuro da vida coletiva, fazendo da região um local sagrado para as comunidades de terreiro. Os ambientes que são compostos pelo parque possuem suas formas de denominação do sagrado nas suas relações com os Orixás. Lá estão a Cachoeira de Oxum, a Cachoeira de Oxumaré, a Cascata de Nanã… A “escada dos escravos” é mais um exemplo de como o parque respira a ancestralidade e espiritualidade das comunidades de terreiro, pois em cada pedra da escadaria há um fundamento de Orixá. Segundo Nívia Luz: 

 “O parque São Bartolomeu é o respiro e o sustento de muitos de nós. Esta floresta é a nossa mãe espiritual. Promover a venda, o espólio, é tirar das nossas vidas o alimento da alma! A APA São Bartolomeu é um espaço para a prática do bem-viver e morada de Orixá, de Inquice; é casa de encantados é o santuário a décadas do povo de Terreiro”

A Ialorixá foi criada pela comunidade do Parque São Bartolomeu. Sua avó, mãe Santinha de Oyá, fundou o Terreiro Ilé Asé Oyá a partir de um chamado espiritual, erguendo um terreiro onde antes era uma região de lixo e entulhos. Nesse lugar que era uma “zona de sacrifício”, mãe Santinha trouxe vida, desenvolveu um projeto de educação ambiental, que resultou em uma horta medicinal de extrema importância para o povo de santo. Ali se desenvolveu também o Instituto Oyá, centro de arte e educação que hoje em dia é utilizado por toda a comunidade do entorno em Pirajá, traçando as linhas que constituem um projeto de futuro com beleza, arte e cuidado junto da população local. 

As comunidades do Parque São Bartolomeu também constroem dentro do parque outras formas de afetividades com a natureza, para além da espiritual. Desde 2017, o Parque realiza atividades ecológicas com o intuito de aproximar a população de Salvador para o conhecimento e cuidado do parque. Essas atividades contam com o apoio de membros da comunidade, do Grupo Ambientalista da Bahia (Gambá) e conselheiros da APA Bacia do Cobre. Ao tomarem conhecimento de que o parque estava sendo ameaçado, membros da comunidade produziram um vídeo em defesa do parque. No vídeo apresentam seus sentimentos para com o parque, a seguir alguns dos depoimentos presentes no vídeo:

“Jamais nós iremos concordar com uma situação dessas, nem imagina um parque desses que é luta nossa, ser privatizado. (…) Isso aí esvaziaria a cultura do nosso povo, nosso povo tem a liberdade de entrar e sair, não precisa pedir licença pra entrar no que é nosso, isso aqui é uma coisa da comunidade, uma coisa que a 40, a 60 anos o nosso povo lutou. Porque a iniciativa privada ela é assim, começa muito bem, mas depois ela pensa em ter só lucro, mais nada”

Elionaldo Gomes, Val do Parque e Presidente da Associação de Moradores de Nova Esperança Ilha Amarela

“Pra mim e pra minha família seria como se fosse uma prisão porque você vai ser impedido de estar em um lugar que você quer, um lugar que é, que você frequenta desde criança e nunca lhe proibiram de ir, é a gente, o parque é nosso, é da comunidade”

Vera Souza, empreendedora e professora de pilates

“A gente vai passar fome, porque não tem de onde tirar, é a nossa única solução é isso aqui que a gente vive’

Nair Casaes, feirante 

“Se privatizar quer dizer que o tempo da escravidão nunca passou né, nunca passou, então pra gente que tá dentro da comunidade e a gente se beneficia com essa, essa coisa natural, certo? A gente acaba perdendo a vida.”

Anemone Santos, pescadora 

Ao contrário do que é apresentado pelo BNDES acerca da consciência ambiental das populações locais, há um consenso popular de que o Parque São Bartolomeu é “o pulmão da suburbana”. O que realmente tornam as comunidades “perigosas” para a realização desse projeto de econegócio parece ser, de forma oposta, justamente a consciência dos comunitários, que compartilham um sentimento de que o parque é parte da luta de seu povo, e enxergam na concessão o risco de “esvaziar a cultura do povo”. Compreendem, de forma geral entre as pessoas entrevistadas, que a iniciativa privada, independente da narrativa que se utilize (de sustentabilidade ou não), no fim, sempre pensará apenas no lucro. 

Tais percepções encontram um esboço já traçado de forma crítica pelo geógrafo Carlos Walter Porto-Gonçalves: “Esses novos colonizadores do econegócio não vêem sequer as árvores, pois nelas veem carbono e material genético que não são visíveis a olho nu, como os grupos sociais e povos que ali habitam conformaram suas culturas.” 

O que está por trás do econegócio é uma tentativa de lucrar com a narrativa da sustentabilidade em meio ao risco real de devastação ambiental. Na realidade, os governos que estão correndo atrás da agenda do Banco Mundial parecem estar em busca de uma forma de mercantilizar áreas que anteriormente eram vistas apenas como “despesas”, destinando áreas comuns à indústria do turismo como forma de obter lucro rápido. Esse movimento tem a tendência de se ampliar e se espalhar em diferentes unidades de conservação, pois desde a crise financeira de 2008, o grande capital especulativo tem se expandido em direção às privatizações da natureza, o que se soma com as especulações de crescimento de turismo em locais abertos após a pandemia do COVID-19. 

Por esse motivo que se percebe que a narrativa da sustentabilidade por trás do econegócio está sendo confrontada em um conflito ambiental faz, no qual a disputa pelas narrativas revela que não é apenas o uso que é feito das Unidades de Conservação que está em negociação, mas o comum em risco de ser privatizado. A disputa ocorre, portanto, entre visões de mundo e entre diferentes relações que se estabelecem com a natureza, o que implica em ditar projetos de futuro e moldar as memórias que se contam e se narram do passado. Ao mesmo tempo, essa disputa em São Bartolomeu também revela que o que está sendo ameaçado são as raízes históricas de defesa e resistência de comunidades que possuem o que o antropólogo colombiano Arturo Escobar chama de “sentipensar con la tierra” ( 2014), com o território, e o quanto essas raízes terão a permissão de frutificar para futuras gerações. 

Ao ser questionada acerca de como o projeto de concessão de parques afetaria a sua comunidade de candomblé, a Ialorixá Nívia Luz oferece a resposta que consegue costurar todas as temporalidades afetadas por esse projeto:

“Como afeta o terreiro e a comunidade? De todas as formas! Com a perspectiva da perda, o risco do adoecimento, por a gente não imaginar que tipo de barganha e de acordo que está vindo aí, sem nem ao menos ser consultado e saber o que é que a gente tem e o que é que a gente vive do lado de cá. (…) Ao mesmo tempo, a perda de uma tradição; o Candomblé é a natureza, o Candomblé é regido pelos orixás que representam os elementos da natureza, tudo que nós temos no parque São Bartolomeu. Então, é a perda de elementos do Sagrado; é a perda do direito de ir e vir; é também a perda de professar a nossa fé.”

De um lado dessa história, localiza-se a narrativa do econegócio. Constroem a ideia de que as populações locais são incapazes de preservação ambiental, mesmo tendo sido essa população a que conviveu e cuidou da natureza local por tantos anos, e sustentam seus projetos através da narrativa de sustentabilidade aliada ao desenvolvimento e ao lucro com o turismo. O que o econegócio vê ao enxergar o Parque São Bartolomeu é exatamente o que colocam em seu documento sobre concessões de parques, vêm “geração de benefícios financeiros”: excursões guiadas, caminhadas, mergulho, serviço de acomodação, restaurantes, lojas de suvenires, pesca esportiva, caçada, montaria, aluguel de caiaques, bicicletas e demais equipamentos esportivos e de recreação. Com essa narrativa, o econegócio ganha a atenção das pessoas, pois não defende um ataque direto de destruição da natureza do parque, mas é tão violento quanto, pois ataca as comunidades e seu modo decolonial de se relacionar com a natureza. 

Do outro lado dessa história de uma linearidade homogeneizadora do mercado e da sustentabilidade, localizam-se temporalidades que vão muito além dos projetos de “futuro sustentável” do econegócio e do capitalismo. É nesse lugar onde encontram-se as comunidades que vivem o parque e convivem com a natureza, que trazem sentimentos profundos de interdependência e inter-relação para com a natureza que compõe esse lugar. Através de diferentes formas afetos que estabelecem com o parque, constroem resistências, sejam essas afetividades “positivas”, como o amor e o respeito que possuem pelo local, ou afetividades “negativas”, como a raiva por passarem anos tendo que lutar para garantir algo que sentem ser deles por direito, ou o medo de perder um espaço que representa sustento, lazer, ancestralidade e espiritualidade. Como percebemos nas entrevistas e materiais que encontramos ao longo dessa pesquisa, são essas emoções que sustentam a defesa do parque, pois as emoções têm o poder de agir como forças motrizes que tanto constroem subjetividades políticas que se vêem como parte da natureza do local, quanto atuam como gatilhos para mobilização política de resistência e sustentação do Parque São Bartolomeu. 

Referências:

ESCOBAR, Arturo. Sentipensar con la tierra. Nuevas lecturas sobre desarrollo, territorio y diferencia. Medellín: Ediciones UNAULA, 2014.

GORINI, Ana Paula Fontenelle. MENDES, Eduardo da Fonseca. CARVALHO, Daniel Mostacada Pinho. Concessão de serviços e atrativos turísticos em áreas naturais protegidas: o caso do Parque Nacional do Iguaçu. Rio de Janeiro: BNDES Setorial. 2006.

PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. Amazônia: os povos da floresta e o econegócio. Disponível em: https://iela.ufsc.br/noticia/amazonia-os-povos-da-floresta-e-o-econegocio Acesso em: 27 de set. 2021

Julia Mota de Brito

Júlia Mota de Brito nasceu em 7 de julho de 2001, em Salvador (Bahia). Atualmente, é graduanda do Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades da Universidade Federal da Bahia (UFBA). É membra do Coletivo Dandaras, coletivo de mulheres negras formado por estudantes no ano de 2020, e bolsista de iniciação científica, pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb), no Projeto Ecologias Antirracistas na Bahia: Comunidades Tradicionais, Cultura e Ecologia Política. Entre 2019 e 2020, foi bolsista de iniciação científica, pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), no Projeto Ecologia Política e Insurgências Decoloniais.