Supressão territorial; poluição do rio Flexeira; invasões de território por caçadores, madeireiros e extrativistas; queimadas criminosas; mortes de animais silvestres por atropelamento, incêndio ou caçadas; tensões do entorno, devido à presença de fazendas, da rodovia BR-222 e da Estrada de Ferro Carajás (EFC)

Os processos econômicos no Pará, intensificados por grandes projetos de intervenção governamental, têm causado impactos ambientais e socioculturais imensuráveis às populações indígenas. O caso do povo Gavião é emblemático. O nome Gavião foi atribuído a diferentes grupos Timbira por viajantes missionários no início do século XX; esses grupos se destacavam por suas características bélicas e utilizavam penas de gavião como um dos principais itens de adorno.

 Os Gavião se distribuíam em três unidades locais autodenominadas conforme a posição que ocupavam na bacia do rio Tocantins. A primeira delas se denomina Parkatêjê (onde par é pé, jusante; katê é dono; e é povo), o “povo da jusante”. A segunda, Kyikatêjê (onde Kyi é cabeça), o “povo de montante”, pois, no início do século XX, em função de conflitos com os Parkatêjê, refugiou-se a montante do rio Tocantins, já no estado do Maranhão. Por essa razão, os Kyikatêjê também são designados como grupo do Maranhão. Já a terceira , que ocupava as cabeceiras do rio Capim, ficou conhecida como “turma da montanha” ou, conforme sua autodenominação, Akrãtikatêjê (onde akrãti é montanha).

Os Gavião são falantes de uma língua timbira oriental, vinculada à família linguística Macro-Jê. Os primeiros contatos entre eles e as frentes de expansão ocorreram ainda na década de 1920, apresentando distintas fases. A primeira compreendeu contatos esporádicos, pacíficos, visuais, entre os indígenas e os “civilizados”. À época, os “desbravadores” não indígenas utilizavam as margens do rio para pouso ou descanso em viagens, não havendo então motivação para se penetrar no interior da mata.

Entretanto, quando o extrativismo vegetal (caucho, óleo de copaíba e, finalmente, castanha-do-pará) ganhou força, assumindo maior importância para a economia regional, modificou-se a estrutura socioeconômica do médio Tocantins e do Burgo do Itacaiúnas, iniciando-se a penetração nas matas da margem direita do rio Tocantins, em busca de castanhais. Por conseguinte, começaram os conflitos.

Iniciava-se ali uma luta sangrenta entre o povo Gavião e a sociedade regional, em especial com os coletores de caucho e, posteriormente, castanha. O povo Gavião era acusado de praticar “grandes selvagerias”. Em Marabá, principal centro comercial da região, durante as décadas de 1930 e 1940, grupos políticos locais, comerciantes e donos de castanhais organizavam expedições de extermínio aos indígenas.

Em 1943, o interventor federal do Pará concedeu por decreto uma gleba aos Gavião. O reduzido grupo passou então a habitar as cabeceiras do igarapé Mãe Maria, localizado entre os rios Flecheira e Jacundá. Em seguida, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) passou a explorar comercialmente a área, com arrendamentos a terceiros para exploração dos castanhais ali existentes. Dadas as dificuldades do acesso, a quantia cobrada pelos arrendamentos era irrisória.

No início da década de 1950, considerando-se a total ausência de condições de resistência e tratamento dos doentes, seja por enfermidades oriundas da floresta, seja pelos constantes ataques de que eram alvo, os indígenas viram como única possibilidade de sobrevivência buscar o contato e a “negociação” de “trégua” com os Kupên (não indígenas).

Convém apresentar também um breve histórico do grupo Kyikatêjê. No início dos anos 1960, eles habitavam uma região situada no curso do igarapé dos Frades, afluente do rio Tocantins, no entorno dos limites dos atuais municípios de Cidelândia e Vila Nova dos Martírios (MA). Naquele momento, essas terras estavam localizadas no município de Imperatriz, cujo território foi desmembrado ao longo dos anos 1980, dando origem a diversos outros municípios.

A abertura da rodovia PA-070 (atual BR-222), ligando o município de Marabá (PA) à rodovia Belém-Brasília (BR-010), promoveu o rápido avanço da frente pecuária e a penetração de posseiros e grileiros no território então habitado pelos Kyikatêjê. Antônio Soares Cotrim, sertanista da Fundação Nacional do Índio (Funai), em artigos publicados em jornais da época, denunciava ainda a ação da Companhia Industrial de Desenvolvimento da Amazônia (Cida), que também passava a esbulhar as terras dos Kyikatêjê com projetos madeireiros. Não por acaso, um dos municípios que hoje incide sobre as terras então ocupadas pelos Kyikatêjê se chama Cidelândia.

 A ocupação do território kyikatêjê por essas frentes de expansão provocou reações dos indígenas. O pânico que se instalou na região levou o governo militar a publicar o Decreto n° 63.515, de 31 de outubro de 1968, interditando uma extensa faixa de terras com vistas a conter as invasões e promover o contato com esse grupo Gavião. O decreto, no entanto, não foi respeitado e as terras dos Kyikatejê continuaram a ser griladas e negociadas. A área interditada corresponde  a porções dos municípios de Cidelândia, Vila Nova dos Martírios e São Pedro da Água Branca (MA) e Rondon do Pará (PA).

Em 1969, o contato foi realizado. Ante diversas ameaças de “massacre” contra o grupo, a Funai negociou com os Kyikatêjê sua transferência para a Terra Indígena (TI) Mãe Maria. Segundo a antropóloga Iara Ferraz, os custos dessa remoção foram arcados pela Cida, cujas práticas de esbulho e grilagem haviam sido previamente denunciadas por Cotrim.

Com a abertura da PA-70, a área de Mãe Maria, até então considerada de pouca relevância, passou a despertar grande interesse entre dezenas de posseiros, que se instalaram na TI. Vendo-se que os funcionários da Funai e os indígenas que ali habitavam seriam insuficientes para conter a ocupação da área, planejou-se o agrupamento dos diferentes grupos locais Gavião (Parkatêjê, Kyikatêjê e, posteriormente, Akrãtikatêjê, devido à usina hidrelétrica de Tucuruí) na TI Mãe Maria, que viria a se tornar o reduto de resistência e sobrevivência do povo Gavião.

Atualmente, a TI Mãe Maria se encontra devidamente homologada, através do Decreto n° 93.148, de 21 de agosto de 1986. Localizada no município de Bom Jesus do Tocantins (PA), ela está inserida na bacia hidrográfica Tocantins-Araguaia, sendo limitada a oeste pelo rio Flecheiro e a leste pelo Jacundá. Sua área é de 62.488 mil hectares, compostos por mata tropical e terreno firme. Convém destacar que, na demarcação da TI Mãe Maria, ocorreu uma grave anomalia: a supressão, no decreto de homologação, das faixas da rodovia BR-222 (antiga PA-70), assim como das áreas por onde passam a linha de transmissão da Eletronorte e a Estrada de Ferro Carajás (EFC).

Conforme os dados coletados junto  à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os povos Gavião atualmente contam com população estimada em mais 900 indígenas, distribuídos em 17 aldeias independentes. Três delas são mais antigas (Parkatêjê, Kyikatêjê e Akrãtikatêjê) e 14, mais recentes (Akrãkaprêkti, Krijãmretijê, Koyakati, Krãpeitijê, Krijõhêrekatêjê, Akrõtikatêjê, Rohokatêjê, Akrãti, Kripei, Print Par, Krintuwakatêjê, Hàktijõkri, Mejõkrikatêjê e Pamrexã).

A instalação de grandes projetos governamentais nas regiões sul e sudeste do Pará ocasionou impactos ambientais imensuráveis e irreversíveis na TI Mãe Maria. Modificações das paisagens, com impactos intensos na fauna e flora da região, foram causadas indiretamente pela implantação inicial das rodovias Belém-Brasília e da Transamazônica. Já a BR-222 impactou diretamente a TI, pois, além do corte de cerca de dois mil hectares de castanhais, afugentou a caça e deixou a área ainda mais exposta e, consequentemente,  vulnerável a invasões e crimes. Registram-se, inclusive, assaltos a ônibus de turismo que fazem a linha Marabá-Belém e a automóveis de passeio, frequentemente conduzidos para o interior da TI. Mais recentemente, uma liderança da aldeia Akrãtikatêjê foi sequestrada. Esses fatos obrigaram algumas aldeias a contratar vigilância especializada, ao passo que, em outros casos, os próprios indígenas têm realizado a proteção de suas comunidades.

A extração de minério de ferro na Floresta Nacional (Flona) de Carajás, no sudeste do estado, alinhada à instalação da Estrada de Ferro Carajás (EFC), inaugurada em 1985,  provocou efeitos diretos sobre as territorialidades e os modos de vidas dos povos indígenas situados na área de abrangência. Com 890 quilômetros de extensão, a ferrovia se destina prioritariamente ao escoamento da produção de minério de ferro para o mercado externo, realizada e administrada pela Vale S.A., antes Vale do Rio Doce.

Associada à cadeia da mineração, a abertura da EFC, ao rasgar áreas de floresta até então inexploradas, por um lado, atraiu e facilitou o acesso de posseiros, grileiros, caçadores, garimpeiros e madeireiros, que passaram a disputar o controle dos territórios indígenas e de seus recursos naturais. Por outro, diariamente, o maior trem de carga do mundo, com quatro locomotivas e 330 vagões, transportando mais de 80 toneladas de minério de ferro, circula estrondosamente pelos centros urbanos e no interior de TIs. Em determinadas situações, a menos de 1,5 quilômetro de aldeias, como é o caso da aldeia Parkatêjê. Entre outras consequências, isso tem acarretado atropelamentos, envolvendo veículos, pessoas e animais, além de provocar a fuga de caças existentes nessas áreas.

No contexto de implantação do Projeto Grande Carajás, a Vale e a Funai firmaram um convênio (nº 059/1982) para prestar assistência aos povos indígenas impactados, abrangendo as áreas de demarcação de TIs e vigilância territorial, saúde, atividades produtivas e infraestrutura.

Em certas ocasiões, as tensões entre as comunidades Gavião e a Vale se intensificam, ocasionando diversas formas de reação. A manifestação de maiores proporções mais recente ocorreu em 2015, nas proximidades da linha férrea, resultando em uma retaliação da Vale, que imediatamente bloqueou os recursos destinados à comunidade, prejudicando-a significativamente. Esse fato deu origem a uma batalha judicial, que ainda tramita na Justiça Federal em Marabá, mais especificamente no Tribunal Regional da Primeira Região (TRF-1). A situação só foi amenizada com a concessão de uma liminar favorável aos povos Gavião, que obrigou a Vale a desbloquear os recursos. Essa liminar se sustenta até os dias atuais.

Outro grande empreendimento com significativos impactos sobre as comunidades Gavião é a passagem da linha de transmissão da Eletronorte pela TI Mãe Maria. A linha de alta tensão, que liga Marabá a Imperatriz, também impactou áreas de castanhais, roças e até o cemitério  da comunidade Parkatêjê, localizado nas proximidades de uma das torres de transmissão, sendo possível, inclusive, escutar a corrente de energia fluindo.

Todos os anos, na TI Mãe Maria, ocorre a “limpeza” do corredor em que passam as torres de transmissão da Eletronorte, sempre no verão. Devido ao clima seco e a outros fatores, inclusive  imprudências, isso costuma acarretar queimadas nas proximidades do linhão, que invadem a área de mata, consumindo a flora e a fauna, e trazendo consequências para as comunidades Gavião, como problemas respiratórios e irritações nos olhos decorrentes da fumaça. Além disso, a qualidade do solo é alterada e a comunidade se expõe a riscos, posto que o fogo muitas vezes se aproxima das residências.

É possível observar a intensificação do estrangulamento territorial, com o cercamento cada vez maior da TI Mãe Maria pelo incessante assédio dos empreendimentos. Um dos mais recentes é a tentativa de convencer as comunidades Gavião a permitirem a realização de estudos que viabilizem a construção da usina hidrelétrica de Marabá. Caso se concretize, esse empreendimento ocasionará nova supressão do território indígena, já tão limitado, e mais ocupação humana, com alta transformação ambiental.

A pressão sobre a TI é constante. A expansão urbana de Marabá é um dos efeitos diretos da ocupação intensa do entorno. As franjas do núcleo de Morada Nova, por exemplo, situam-se a menos de três quilômetros do limite oeste da TI, facilitando invasões para a coleta de castanhas, caça, pesca e outras ilegalidades, situação denunciada pelo povo Gavião em diversas oportunidades.

Mais recentemente, assim como tem ocorrido em outras comunidades indígenas, o povo Gavião tem sido acometido pela Covid-19. Como vimos, as aldeias na TI Mãe Maria são cortadas por rodovias, havendo fluxo constante, em especial relacionado às atividades minerárias. É importante considerar também que a facilidade de deslocamento e acesso às aldeias, bem como a forma de gestão dos recursos repassados pela Vale às comunidades da TI Mãe Maria tornam a área Gavião extremamente suscetível ao contágio.

Nesse cenário, cada aldeia a assumiu estratégias e protocolos próprios de contenção do vírus, entre os quais: realização de isolamento social das comunidades, evitando a saída de indígenas da áreas, a não ser em situações inevitáveis; limitação de ingresso de pessoas externas às comunidades; solidariedade com os parentes acometidos pela doença; aquisição e distribuição de produtos de higiene; distribuição de alimento para as famílias que se encontrem em dificuldade; diálogo frequente entre a lideranças indígenas, a comunidade e os órgãos de saúde pública. Até o momento, dados extraoficiais informam duas mortes entre os Gavião com suspeita de Covid-19.


Links:

  • andrade, Gilciandro Prestes de. 2015. A Amazônia e o Projeto Grande Carajás, entre as tentativas de desenvolvimento da região e os problemas causados às populações indígenas. In: Mundo Amazónico, v. 6, n. 2, pp. 5-19.
  • ferraz, Iara. 2000. Povo Gavião Parkatêjê. In: Povos Indígenas no Brasil. São Paulo, Instituto Socioambiental. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Gavi%C3%A3o_Parkat%C3%AAj%C3%AA. Acesso em: 20 ago. 2020.
  • silva, Juliano Almeida da. Mimeo. A mineradora Vale S/A e os povos indígenas do sudeste do Pará.
  • silva, Juliano Almeida da. Mimeo. Silenciamento e obliteração da diversidade dos povos indígenas na Amazônia Oriental marcam os 30 anos do Programa Grande Carajás
Povo(s) impactado(s)Gavião
Terra(s) Indígena(s) impactada(s)Terra Indígena (TI) Mãe Maria
EstadoPA
RegiãoSudeste
MunicípioBom Jesus do Tocantins
Período da violaçãoDe 1940 até os dias atuais.
Tipo(s) de população Rural
Fonte(s) das informações Artigo científico
Livro
Site
WhatsApp
Causa(s) da violação Conflitos por biodiversidade e conservação
Extração mineral e mina
Indústria
Manejo de água
Manejo de resíduos/ lixo
Matérias específicas Açúcar
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Ferro
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Lixo industrial
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Terra
Empresa(s) e entidade(s) do governoVale S.A., Eletronorte
Atores governamentais relevantesFundação Nacional do Índio (Funai), Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama)
Tipo(s) de financiamento Nacional
Internacional
Público
Privado
O estado da mobilização diante da violação Alto (mobilização generalizada, em massa, violência, prisões etc.)
Médio (protestos de rua, mobilização visível)
Quando teve início a mobilização?A mobilização começou em 1930 e segue até hoje – trata-se de uma luta constante.
Grupo(s) que se mobiliza(m) Cientistas/ profissionais locais
Grupos indígenas ou comunidades tradicionais
Movimentos sociais
Pastoralistas
Forma(s) de mobilizaçãoReuniões internas nas comunidades, interdição e/ou diminuição do fluxo de veículos nas rodovias, manifestações em prédios públicos, envio de notas e manifestos aos meios de comunicação locais, retenção de veículos de grande porte quando eles ocasionam danos na via e impactos ambientais mais agudos.
Impactos ambientaisVisíveis
Impactos na saúdeVisíveis
Impactos socioeconômicosVisíveis
Avanços positivos no processo de violaçãoO que se percebe são ações constantes de resistência, de modo que o ponto positivo do processo é justamente a capacidade de resistência do povo Gavião.
Avanços negativos no processo de violaçãoComo foram descritas diversas violações, não seria possível especificar os avanços negativos em cada caso, dado o escopo deste documento.
Alternativas viáveis para a solução da violaçãoMaior participação e compromisso com os direitos indígenas por parte das instituições diretamente imbuídas da responsabilidade de protegê-los. Efetiva participação dos indígenas, com poder de veto, em ações que visam promover intervenções do Estado e de empresas privadas em seus territórios ou que ocasionem impactos em seus modos de vida, usos e costumes.
Data de preenchimento19/09/2020

Eric de Belém Oliveira

Eric de Belém Oliveira é brasileiro, com origem e raízes na cidade de Marabá (Pará). É graduado pela Universidade Federal do Pará (UFPA) em Ciências Sociais, com concentração em Antropologia e especialização em Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Atua institucionalmente pela Fundação Nacional do Índio (Funai) junto às comunidades indígenas vinculadas ao polo Araguaia Tocantins e como agente da cidadania e multiplicador de Direitos Humanos, através da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH/PA). Artista urbano multidisciplinar, é fundador do Coletivo Consciência Negra em Movimento (CCNM), com intervenções políticas culturais nas regiões sul e sudeste do Pará.