Racismo socioambiental, sobreposição territorial, reintegração de posse e especulação imobiliária na TI Comexatibá

O povo Pataxó historicamente habita a região em que está localizada a Terra Indígena (TI) Comexatibá, no município de Prado, no extremo sul do estado da Bahia. Trata-se de uma região marcada pelo processo de colonização do Brasil desde 1500, que chegou a ser definida pelo Estado, de forma equivocada, como “Costa do Descobrimento”. Ali, aconteceram muitos processos emblemáticos envolvendo violações de direitos dos povos originários, incluindo a expulsão de seus territórios e diferentes conflitos agrários.

A demarcação da TI mencionada vem sendo demandada pelos indígenas há décadas, mas essa cobrança se intensificou a partir dos anos 2000, quando um importante encontro realizado em Porto Seguro (BA), em comemoração aos 500 anos de Brasil, mostrou ao mundo uma união articulada dos povos indígenas das diferentes regiões do Brasil, pela busca dos seus direitos, especialmente pela demarcação dos seus territórios originários, ancestrais. Por outro lado, nesse encontro foi possível notar o tratamento do Estado brasileiro para com os povos indígenas: a mobilização no marco dos 500 anos foi reprimida com brutalidade, com a utilização de grande quantidade de balas de borracha, bombas de gás e outras agressões diretas.

A partir daquele ano, o povo Pataxó do Extremo Sul, inclusive os moradores dessa TI, intensificaram o importante processo de autodemarcação de suas áreas, realizando uma série de retomadas, na tentativa de pressionar o Estado brasileiro para demarcar as áreas que são comprovadamente de origem do povo.

Paralelamente a esse processo, no ano de 1999, foi criado o Parque Nacional (Parna) do Descobrimento (PND). A criação dessa unidade de conservação (UC), sem consulta e participação das comunidades indígenas, trouxe mais um embate para a demarcação da TI, posto que a UC se sobrepõe aos limites da histórica área indígena. De lá para cá, são recorrentes as pressões do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), representado por seus agentes, na tentativa de retirar as famílias que habitam as diferentes comunidades indígenas que margeiam essa UC. Cerca de 19,6% da área do PND incide na TI. Ainda se tratando de áreas que se sobrepõem à TI, há uma incidência de 93,95% do Projeto de Assentamento (PA) Fazenda Cumuruxatiba, 30,37% do PA Reunidas Corumbau e, de acordo com o levantamento fundiário realizado pela Fundação Nacional do Índio (Funai), um total de 78 pretensas propriedades de ocupação não indígena.

O conflito na região escalou com o avanço do processo de demarcação da TI, mais especificamente com a publicação do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) no Diário Oficial da União (DOU), no dia 27 de julho de 2015. Ele reconheceu que a TI Comexatibá se estende por uma área de aproximadamente 28.077 hectares. No mesmo ano, a Aldeia Kaí, situada na TI, sofreu alguns ataques. No mês de agosto, a comunidade teve seu importante centro cultural incendiado por homens armados, que invadiram a comunidade à noite; em 7 de setembro, indivíduos não identificados, espreitando em um dos acessos vicinais à aldeia, proferiram disparos contra o veículo de uma das lideranças da comunidade; no final de setembro, um veículo que fazia o transporte escolar da comunidade foi emboscada por homens armados, que dispararam diversas vezes contra o veículo e, ao final, o incendiaram.

Outro ataque brutal foi a reintegração de posse sofrida pelas aldeias Kaí e Gurita no dia 19 de janeiro de 2016, cumprida com utilização de força policial. A ação culminou na destruição violenta de dezenas de moradias de famílias indígenas, na queima de materiais didáticos, e na destruição de mesas e carteiras que eram utilizados pelos estudantes.

As comunidades indígenas dessa TI sofrem ainda com o perverso avanço em seu território da monocultura de eucalipto, que polui as nascentes dos rios e causa desmatamento de diferentes níveis dos importantes remanescentes de Mata Atlântica presentes na região, agredindo a fauna, a flora e a memória cultural do povo Pataxó.

Vale destacar ainda que os não indígenas contrários à demarcação que dispõem de pretensas propriedades na TI contam com o apoio declarado da Prefeitura Municipal de Prado, chefiada por Mayra Brito (PP), em seu segundo mandato. Ela se reelegeu em 2016, em um processo marcado por acusações de fraudes eleitorais, como enfatizam lideranças do território. Diversos atos foram cometidos para impedir que as populações situadas nas áreas mais remotas do município – como é o caso das comunidades indígenas – chegassem às urnas para votar. A prefeita já chegou a declarar, a diferentes veículos de comunicação da região, que não apoia a demarcação da TI Comexatibá, juntando-se com os fazendeiros, donos de hotéis e pousadas com áreas no interior do território indígena.

A região onde a TI Comexatibá está localizada sofre enorme especulação imobiliária, influenciada pelo intenso turismo. À leste da TI situa-se a vila de Cumuruxatiba, que, nos últimos anos, destacou-se como um importante destino turístico do município de Prado. Na TI, há grandes empreendimentos turísticos, como hotéis e grandes pousadas, e seus donos lutam intensamente contra a demarcação, chegando a contratar um antropólogo para realizar um estudo contrário aos indígenas. Verifica-se ainda a presença de grandes fazendas de criação de gado, monocultura de café e eucalipto, que causam diferentes danos para as comunidades indígenas, seja pelo embate direto, com a contratação de pistoleiros, seja pelo desmatamento intenso das matas, pela degradação dos rios e dos solos, com o uso indiscriminado de agrotóxicos.

Há ainda forte criminalização das lideranças da TI. Este ano, representantes do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH) reuniram-se com os indígenas para discutir a questão. Seis lideranças indígenas integram o programa, em função de ameaças de morte. A reunião, da qual também participaram o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a Defensoria Pública da União (DPU) e a Funai, foi realizada para que as comunidades relatassem a esses órgãos as violências que vêm ocorrendo. Apenas no final do ano de 2019 ocorreram cinco ataques às aldeias e alideranças da TI, registrando-se também aumento das ameaças.

Este ano, com a chegada da Covid-19, que rapidamente atingiu o município de Prado, registrou-se enorme tensão entre as comunidades da TI, que sofrem com o descaso na saúde pública há tempos, e com o sucateamento da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai/MS). Não há estrutura hospitalar perto das comunidades, para suportar uma possível demanda de leitos. Entendendo isso, alguns indígenas que não eram do grupo de risco reuniram-se para apoiar a barreira sanitária criada voluntariamente pelos moradores da vila de Cumuruxatiba, na tentativa de frear a entrada de pessoas que não são da vila, sobretudo os turistas menos conscientes, que não davam o devido respeito aos nossos moradores, aos idosos principalmente. A  barreira orientava as pessoas sobre o risco de contaminação em massa, que certamente atingiria as aldeias indígenas no entorno da vila. Os indígenas bloquearam a rodovia BA-001, que liga a sede do município aos distritos de Corumbau e Vila de Cumuruxatiba, em dois pontos, na tentativa de impedir a propagação do vírus nessas comunidades.

Apesar de toda essa mobilização, houve uma contaminação assustadora de indígenas no território, inclusive de funcionários da Sesai/MS, do Polo Base de Itamaraju, que prestam atendimento direto às comunidades. Essa situação provocou muito temor entre os indígenas, pois, como relatam as lideranças, não há apoio dos órgãos responsáveis, como a Funai, a Sesai/MS, o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) Indígena e a Prefeitura Municipal de Prado.


Links:

Povo(s) impactado(s)Pataxó
Terra(s) Indígena(s) impactada(s)Comexatibá
EstadoBA
RegiãoExtremo Sul
MunicípioPrado
Período da violaçãoDe 2000 até hoje.
Tipo(s) de população Rural
Fonte(s) das informações Artigo científico
Site
Outras fontesMovimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (Mupoiba)
Causa(s) da violação Conflito por terra
Conflitos por biodiversidade e conservação
Turismo e recreação
Matérias específicas Celulose
Serviços de turismo
Terra
Empresa(s) e entidade(s) do governoInstituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), empresários do setor hoteleiro e do setor turístico em geral, fazendeiros, Prefeitura Municipal de Prado
Atores governamentais relevantesFundação Nacional do Índio (Funai), Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Ministério Público Federal (MPF), Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai/MS)
Tipo(s) de financiamento Nacional
Público
Privado
O estado da mobilização diante da violação Alto (mobilização generalizada, em massa, violência, prisões etc.)
Quando teve início a mobilização?A mobilização indígena na região, de longa data, intensificou-se a partir da criação do Parque Nacional (Parna) do Descobrimento (PND), em 1999. As tensões aumentaram quando as retomadas de terras se tornaram recorrentes, e se inflamaram expressivamente durante a realização dos estudos de identificação e delimitação da Terra Indígena (TI) Comexatibá. Quando o atual presidente da República foi eleito, os conflitos aumentaram outra vez, posto que ele já declarou ser totalmente contrário aos povos indígenas. Mais recentemente, a chegada da Covid-19 tem deixado o povo Pataxó em alerta.
Grupo(s) que se mobiliza(m) Cientistas/ profissionais locais
Grupos indígenas ou comunidades tradicionais
Forma(s) de mobilizaçãoAs comunidades se articulam em reuniões com as lideranças da Terra Indígena (TI) Comexatibá, e têm participando de audiências públicas com o governo do estado da Bahia, com o acompanhamento da Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento e do Ministério Público Federal (MPF), inclusive da Sexta Câmara de Coordenação e Revisão (6CCR).
Impactos ambientaisVisíveis
Impactos na saúdePotenciais
Impactos socioeconômicosVisíveis
Avanços positivos no processo de violaçãoO Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF-1) supendeu temporariamente as ações de reintegração de posse relativas à Terra Indígena (TI) Comexatibá até a sentença de mérito. A publicação do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) da TI no Diário Oficial da União (DOU), em 2015, tornou-se uma ferramenta de enorme importância na luta pela demarcação definitiva da área. Outro avanço, embora provisório, foi a suspensão até o fim da pandemia, por parte do ministro Edson Facchin, do Supremo Tribunal Federal (STF), de todos os processos judiciais de reintegração de posse e de anulação de demarcação de TIs em tramitação no Brasil.
Avanços negativos no processo de violaçãoOs pontos negativos nesse processo são a utilização do aparato estatal contra os indígenas, com a polícia, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e, principalmente, a Prefeitura Municipal de Prado, cuja titular já se pronunciou seguidas vezes contrariamente à demarcação, alegando que atua em favor dos empreendedores do município e do turismo.
Alternativas viáveis para a solução da violaçãoA garantia dos direitos territoriais é uma das principais demandas dos povos indígenas da Bahia. Uma alternativa viável seria a demarcação das terras indígenas (TIs) do estado, pois isso certamente diminuiria em muito os conflitos existentes, fazendo com que as famílias indígenas pudessem viver com dignidade e se sentissem amparadas em seu território. Com a demarcação, se fortaleceria o acesso a políticas públicas básicas, garantindo-se o direito das comunidades à educação, à saúde e à segurança, entre outros. A União, representada por seus diferentes órgãos, tem responsabilidade direta em relação às tensões geradas pelas violações historicamente cometidas pelo Estado brasileiro contra os povos indígenas, especificamente os Pataxó.
Data de preenchimento01/09/2019

Daniel da Silva

Daniel da Silva é jovem do povo Pataxó, da Terra Indígena Comexatibá, aldeia Kaí. Graduando em Geografia na Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Rutian do Rosário Santos

Jovem liderança indígena do povo Pataxó (Bahia), graduanda em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Possui graduação em Ciências Econômicas pela UFBA (2014) e especialização em Direitos Humanos e Contemporaneidade pela mesma universidade (2020). É pesquisadora colaboradora do Programa de Educação Tutorial (PET) Comunidades Indígenas UFBA. Atua como colaboradora do projeto Cunhataí Ikhã (Meninas em Luta) da Associação Nacional de Ação Indigenista (Anaí). É diretora financeira do Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (Mupoiba).