POVO JENIPAPO-KANINDÉ

Relato de experiência:

Pesquisador: Iuri Alves Gomes 

Povo: Jenipapo-Kanindé 

Curso: Bacharelado em Biologia 

Pesquisar sobre a realidade de outros povos indígenas durante esta pandemia tem sido de grande importância. Chega a ser emocionante ouvir todos esses relatos. Sinto muito por todos aqueles que perderam suas vidas para a Covid-19, por aqueles que não têm saneamento básico para se prevenirem, que lutam contra a falta de água, que não têm aldeia para morar. Sinto muito pelos que sofreram preconceito por terem sido infectados. Acredito que nós nunca estamos preparados para viver em um momento tão delicado como este. E que o medo de morrer e de perder algum parente tornou as pessoas menos ou mais solidarias. 

Nas entrevistas com parentes indígenas, aplicou-se um questionário que explicava um pouco a pesquisa e continha algumas perguntas. Porém, logo as perguntas iam ficando de lado, e a conversa se tornava mais abrangente, deixando de ser monótona.  

Agradeço a todos os indígenas (caciques, cacicas, pajés, lideranças, educadores, pessoas da área da saúde, mães e jovens indígenas) que participaram desta pesquisa de forma direta e indireta, confiando a mim suas angústias e medos. O fato de eu ser pesquisador indígena e pesquisar sobre nossa cultura mostrou-se de grande importância para os parentes. Muitos, em suas falas, relatam a importância de haver indígenas nas universidades.  

Que o Pai Tupã possa protegê-los e nos iluminar. Logo, logo, estaremos cantando e dançando nossos rituais. Logo, as cantigas serão cantadas, os tambores tocados, as maracás balançadas e a orações ouvidas. DERMARCAÇÃO JÁ!

Questionário

Esta pesquisa está sendo feita por estudantes indígenas da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), junto com estudantes indígenas da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), em parceria com a Universidade de Sussex, da Inglaterra. Ela é parte do projeto Mapeamento das Violações aos Direitos Indígenas no Nordeste do Brasil. Seu objetivo principal é saber como tem sido o período marcado pela pandemia do novo coronavírus para as populações indígenas do Ceará, atentando-se às medidas de prevenção tomadas pelas aldeias, ao número de casos e aos principais impactos nas comunidades. 

1. Qual seu nome? 

2. Qual sua idade?

3. Qual seu povo? Em que município você vive?

4. Na sua aldeia, ocorreu algum caso de Covid-19?

5. Quais foram os protocolos de segurança que a aldeia tomou?

6. Como foi para você, indígena, viver este momento tão delicado?

7. Você foi afetado de alguma forma? Se sim, quais foram os principais impactos?

8. Você perdeu algum parente ou conhecido para a Covid-19?

Heraldo Alves, liderança do povo Jenipapo-Kanindé, coordenador do turismo comunitário e do Museu Indígena

Foto de Heraldo Alves (Preá)

Meu nome é Heraldo Alves, sou conhecido como Preá. Sou do povo indígena Jenipapo-Kanindé, no município de Aquiraz (Ceará).  Nós, Jenipapo-Kanindé, tivemos dois casos de Covid-19. Tivemos o caso de uma indígena, mas o vírus não foi contraído aqui: ela vive na linha de frente, trabalha em Caucaia. E o outro caso foi de uma não indígena, casada com um indígena, que também vive na linha de frente. 

A gente se preocupou com essa pandemia do novo coronavírus. Logo quando começou, a gente trancou a aldeia e seguimos as normas de segurança. A pandemia veio para atrapalhar muito nosso trabalho de espiritualidade. O toré, a gente não podia fazer, por conta da quantia de gente que se reúne. Então, a gente fazia nossa espiritualidade sozinhos, recebendo forças com os encantados. Eu, Preá, fui muito afetado. Eu trabalho com o turismo comunitário e no Museu Indígena, e tivemos muito prejuízo, com pacotes de visita cancelados. Então, fomos muitos afetados, porque essa situação tirou muito da nossa renda, e não tivemos venda de artesanato. Graças a deus, fomos afetados só nisso, não perdemos parentes aqui. (Heraldo Alves, 17 de setembro de 2020)

Carline Alves, liderança do povo Jenipapo-Kanindé, secretária da Escola Indígena Jenipapo-Kanindé

Foto de Carline Alves

Sou Carline Alves, tenho 33 anos, sou indígena Jenipapo-Kanindé, do município de Aquiraz (Ceará). Aqui na aldeia, houve dois casos de Covid-19. Quando começou a pandemia, nós fechamos todas as entradas, para não haver contato das pessoas de fora com a nossa comunidade. O povo da nossa comunidade ficou resguardado dentro de suas casas, como pedia a OMS [Organização Mundial da Saúde] e, se precisassem sair, usavam os EPIs [equipamentos de proteção individual], máscara e álcool em gel – só nos casos em que precisassem mesmo sair de casa. 

Este momento tem sido muito difícil, porque a gente tinha uma vida e, quando a pandemia veio, mudou tudo. Nós tivemos que nos readaptar em muitas coisas e ficar trancados dentro de casa. Para nós, que somos indígenas, isso não é o que a gente vivencia. É como se a gente fosse um passarinho preso dentro de uma gaiola. 

Estamos retomando as nossas atividades, mas com receio e medo. Tivemos muitos impactos; um deles foi no turismo comunitário, nas trilhas ecológicas. Parou de entrar renda para essas famílias, que sobreviviam do turismo comunitário; como a gente não podia mais receber visitantes, não entrou mais renda para essas famílias. 

Como sou gestante, fiquei com muito medo. Eu saía só para fazer os exames de pré-natal e ultrassonografia. Mas era como se a gente botasse o pé na rua e o vírus estivesse ali para nos pegar. Logo no início da pandemia, a gente passava pelas ruas e não via ninguém, tudo fechado. Era como se o mundo tivesse parado realmente, uma coisa que a gente nunca viveu. Ainda tenho muito medo, ainda mais por ser do grupo de risco. A retomada tem sido muito difícil, ver todo mundo de máscara dá medo, parece que estamos vivendo em outro mundo. Antes da pandemia, quando a gente via alguém de máscara, era porque tinha algum problema muito sério; hoje não, todos têm que usar máscara. 

Na educação, também tem sido bastante difícil, pois desde março os alunos estão tendo só aulas remotas. Para muitas famílias e muitos alunos, é bastante difícil, pois nem todo mundo tem condições de ter celular para receber as videoaulas e acompanhar as atividades direcionadas para aquela turma, porque não pode haver contato direto. As comunidades indígenas ainda não aceitam que as aulas retornem, porque é um risco. Em uma sala de aula, os alunos se tocam, eles vão querer tirar a máscara e, se por acaso, vier um contaminado, ele vai contaminar todos. E nem todas as escolas têm estrutura para receber os alunos no retorno dessas atividades. (Carline Alves, 17 de setembro de 2020)

Maria de Lourdes da Conceição Alves, Cacique Pequena do povo Jenipapo-Kanindé

Foto de Maria de Lourdes da Conceição Alves

Boa noite, eu sou Maria de Lourdes da Conceição Alves, conhecida no Brasil inteiro como Cacique Pequena. Sou do povo Jenipapo-Kanindé e a minha aldeia fica aqui no município de Aquiraz (Ceará). Na minha aldeia, duas pessoas tiveram Covid-19, mas os casos foram fracos. Logo, logo, eles ficaram bons e hoje já estão trabalhando. Na pandemia, a gente procurou se preservar, usando sempre máscara, álcool em gel e se distanciando do povo. Quando a gente viu que estava na chama mesmo da doença, a gente se distanciou e pediu que ninguém entrasse na aldeia, principalmente o pessoal de Fortaleza, que vinha fazer trilhas, e as pessoas que vinham fazer pesquisa comigo. E com o povo do lugar, o contato que temos é distante, não estão junto com a gente, não tem aglomeração. Estamos fazendo dessa forma, para ninguém adoecer na aldeia. Viver esta pandemia tem sido muito difícil. A gente não pode se reunir para fazer nossa espiritualidade, mas fazemos distantes. Nós pensamos em nossos encantados, na nossa ancestralidade, nos astrais, pedimos forças aos encantados da mata, das águas, pedimos força à mãe terra, à própria natureza. Porque o índio gosta muito de se comunicar com a natureza, eles têm muito contato para receber a força espiritual, e a gente fez tudo isso para não acontecerem coisas piores dentro da nossa aldeia. E assim, a gente foi vivendo. Agora, a gente já vai sentindo as coisas mais maneiras. Por um lado, a doença já está acabando e a gente está pedindo sempre essa permissão aos nossos encantados e ancestrais, para que a gente não tenha esse tipo de problema na aldeia. A gente não pede só para nós, a gente pede para as outras aldeias, comunidades, municípios, para o Ceará em peso, para o Brasil e para o mundo. Porque a gente sabe que foi uma coisa que veio acabando com todo o mundo, então a gente pede para todos. Eu senti que foi muito difícil, porque parou tudo. Um dia ou dois, tudo bem, mas parou seis meses, desde março, e até hoje ainda continua. A gente recuou, porque é uma doença que está no mundo inteiro, e a gente continua se preservando para que não venha essa doença para dentro do nosso lugar. Tivemos dificuldade, sim, porque parou todo o trabalho, pararam os empregos, ficou todo mundo sem poder trabalhar e ir em busca do que precisava. Eu mesma não pude sair de casa, porque sou do grupo de risco, já tenho 75 anos, e não posso mais estar me envolvendo como quem é mais novo. Cada vez mais eu me resguardei, me preservei, para que não acontecesse nada comigo. E foi assim que a gente passou estes meses. A gente teve muita ajuda neste tempo, tivemos ajuda da Funai [Fundação Nacional do Índio], do Sesc e do Itaú. Fiquei muito grata a essas organizações que nos ajudaram. E assim vamos vivendo, agradecendo a deus por tudo e por todas as graças. Este ano, a gente sentiu muito, fiquei muito triste, porque o mês de abril é o mês da festa do Marco Vivo, dia 9 de abril. E, por causa desta grande pandemia, a gente não fez, porque era mesmo na força da doença, porque teria muita aglomeração e eu senti que não era bom fazer o Marco Vivo, pedi para as meninas avisarem o povo que não haveria o Marco Vivo este ano. Essa doença veio destruindo tudo. Não veio destruindo uma comunidade, nem um estado: ela veio destruindo o mundo inteiro. Então, a gente tem que respeitar, rezar e pedir a deus para ela ser destruída, ser exterminada e se acabar essa doença que está dentro do nosso país, do Brasil. (Maria de Lourdes da Conceição Alves, 17 de setembro de 2020) 

Marta Evangelista da Silva, mulher indígena do povo Jenipapo-Kanindé, técnica de enfermagem da saúde indígena do Polo Base Potyrõ do Povo Tabeba em Caucaia. Venceu a Covid-19!

Foto de Marta Evangelista da Silva

Marta tem 29 anos, pertence ao povo Jenipapo-Kanindé, da aldeia Lagoa Encantada, localizada no município de Aquiraz (Ceará). Trabalha na linha de frente para o enfrentamento da Covid-19, como técnica de enfermagem da saúde indígena, com os parentes Tapeba. Em nossa conversa, realizada em 19 de setembro de 2020, ela relata como foi viver essa pandemia e ser uma das indígenas infectadas com a doença no Ceará. “Eu não sabia que estava infectada, fui ao posto de saúde da aldeia por livre e espontânea vontade para fazer o teste, pois no trabalho todos estavam fazendo. Tomei um susto ao saber que o resultado era positivo, pois eu não senti nenhum sintoma.” Marta testou positivo para a Covid-19, porém seu caso foi assintomático. 

A jovem indígena conta que ela e sua família sempre se valeram das medidas de segurança para se prevenirem da doença.  Desde o início da pandemia no Brasil, eles já tomavam os devidos cuidados. Por trabalhar como técnica de enfermagem, Marta sabia como se cuidar diante da pandemia, com uso frequente de álcool em gel e lavando as mãos sempre que necessário. Ela conta que, em casa, passava álcool em tudo. Na conversa, sua irmã, Jeovania Evangelista da Silva, diz: “Eu pensei que nossa digital ia sair, de tanto álcool!”. 

Marta relata o preconceito vivido: “Saber que eu estava com Covid-19 nem me deixou tão abalada, mas o preconceito que eu recebi do meu povo foi o que me deixou mais triste”. Ela relatou que foi discriminada por pessoas da própria família, escutando palavras como: “Se ela andar aqui, eu ponho os cachorros”, “Não passem pela rua do Chicrone, que a Marta está infectada”, “Ela deveria sair da aldeia e ficar em outro lugar”. A tristeza que ela sentiu com o preconceito das pessoas foi mais preocupante que a doença em si. “Eu não tive medo de morrer, mas fiquei muito triste com o que o povo falava de mim, como se eu tivesse culpa de ter pegado o vírus.” Ainda segundo a jovem, o preconceito não foi só contra ela, mas contra todos da família.

Mas, como tudo que vem de ruim em nossas vidas é para melhorar, o amor, o apoio e a compreensão que sua família lhe deu superaram tudo. Sua irmã Jeovania conta: “Marta chegou em casa após fazer o exame e disse que o teste tinha dado positivo e que não era para a gente chegar perto dela. Eu não quis nem saber, fui e dei um abraço nela”. Aliado ao amor de sua família, o que lhe deu forças foi sua fé. Ela tem uma fé muito linda, que chega a brilhar em seus olhos, ao falar. “Eu sempre fui uma pessoa de fé, mas, neste momento, tive mais fé ainda e pedi a deus que me ajudasse.” 

Marta termina nossa conversa dizendo: “Nosso povo tem que ser mais solidário, ajudar mais aos outros. Eu e minha família estávamos precisando de apoio”.

Iuri Alves Gomes

Iuri Alves Gomes, nascido em 19 de outubro de 1998, é indígena do povo Jenipapo-Kanindé, da aldeia Lagoa Encantada, localizada em Aquiraz (Ceará). É graduando no bacharelado em Biologia na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), estagiário no Laboratório de Ecologia Vegetal e Restauração Ecológica (Levre/UFRB), membro do Grupo de Pesquisa Restauração Ecológica, Conservação e Conectividade da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Reconecta/Univasf), integrante do Coletivo de Estudantes Indígenas na UFRB e bolsista do Projeto Mapeamento das Violações aos Direitos Indígenas no Nordeste do Brasil. Atua como monitor do Museu Indígena Jenipapo-Kanindé e guia das Trilhas Ecológicas da Etnia Jenipapo-Kanindé.