Povo Anacé

Angela Maria Morais Souza – Anacé

Meu nome é Ângela Maria Morais Souza, tenho 52 anos de idade e moro no município de Caucaia [Ceará], na aldeia Reserva Indígena Taba dos Anacé [Terra Indígena Taba dos Anacé]. Falar da Covid-19 nos remete ao transtorno ocasionado pela doença:  várias pessoas foram infectadas, algumas se saíram bem, outras sofreram mais, e tivemos  uma perda muito grande. Para nós, aqui da rReserva, foi um momento muito delicado e um impacto muito forte, pois perdemos um ente querido, uma liderança muito forte na nossa aldeia, um momento difícil de tristeza. Foram várias doenças, não só a física, mas também psicológicas. Várias pessoas adoeceram e, ainda hoje, o estado da aldeia é muito delicado, por tudo que aconteceu. 

Ao falar sobre a Covid-19, lembramos também dos impactos em nossa educação, na nossa Escola Indígena Direito de Aprender do Povo Anacé. A Covid-19 vem trazendo dificuldades muito grandes; aqui na aldeia, os professores têm que dar aulas remotas e levar as tarefas até as crianças, que depois têm que devolvê-las para que se possam lançar as notas. Essa situação tem impactado o aprendizado das crianças. O contato, estar junto, faz falta; essa situação é algo estranho. Para alguns, não é tão difícil entender, mas outros têm dificuldade enorme. A ausência desse contato que a gente tem que ter com as crianças, professor e criança, criança e professor, vai nos afetando também psicologicamente, com a falta daquela vida que a gente tem, de estar junto. 

O isolamento vem trazendo uma série de empecilhos, difíceis de compreender. É muito complicado o ser humano sem o contato dos parentes, sem poder estar junto, sem poder abraçar. Quando nosso ente querido morreu e não pudemos estar no velório, foi muito difícil. Nós temos hábito de estar no velório, de estar juntos nessa hora. Este ano foi um ano de muitas reviravoltas na nossa vida, acredito que não só entre os Anacé, mas no mundo todo. 

Então, por isso, a gente tem que ter muito cuidado com o que vem trazendo todo esse fardo. A saúde diferenciada que nós temos, o posto de saúde aqui dentro da reserva tem tido todos os cuidados, agendando horário com o médico e o enfermeiro, sem aglomerações, e mantendo o cuidado de usar máscara. Fizemos barreiras e uma portaria, que até hoje permanece na nossa aldeia. Tivemos que tomar essas atitudes para que não houvesse mais uma morte, mais uma e mais uma. Hoje, está mais fácil, os casos vêm diminuindo, mas nós ainda mantemos esse cuidado e essa precaução, para que possamos nos sair, dizer que passamos por isso, mas, pelo menos, escapamos.

Josenir Policarpo Ribeiro e João Gleidson dos Santos Oliveira – Anacé

Josenir – Meu nome é Josenir, sou conhecida como Josenir Anacé, viúva de Cleilson Anacé, uma das nossas grandes lideranças aqui da aldeia, que fez frente mesmo, com decretos [internos, estabelecidos pela comunidade], para que essa doença não chegasse na nossa aldeia, na nossa reserva indígena [Terra Indígena (TI) Taba dos Anacés]. Mas, infelizmente, como todos nós estamos sabendo, é um vírus invisível, que não escolhe quem atingir. É uma perda muito dolorosa. Não foi só mais um, foi o pai das minhas filhas, meu marido, uma liderança da qual toda a aldeia está sentindo falta. Então, eu não posso dizer que foi mais um. 

Quando ele teve Covid-19, todos nós também tivemos, fizemos o tratamento. Minha mãe teve, meu cunhado, meus filhos, mas, graças a deus, está tendo uma baixa, já esteve pior. Tivemos todos os sintomas. A minha filha Yane e a Yasmim, que é a mais nova, já não tiveram sintomas, mas testaram positivo. A Covid-19 impactou tudo. Só por eu ter perdido o meu esposo… Impactou tudo, tudo mesmo. Como eu te falei, já bem antes, foi uma perda que abalou todos aqui. Hoje, as lideranças estão de luto, a comissão de lideranças, os brigadistas, de que ele [o esposo] participava, hoje estão de luto. Ele deixou um legado aqui na reserva, ele lutou muito. Se hoje estamos aqui, ele foi uma das lideranças responsáveis, foram mais de 20 anos de luta e ele sempre à frente, principalmente quando foi para a construção dessas casas. 

Quando veio a questão da pandemia, ele fez linha de frente. Com todos os problemas que ele tinha de saúde, ele sugeriu uma portaria [barreira sanitária], que ainda temos hoje. Ele ficava lá na portaria, onde tem o controle de entrada. O decreto foi feito justamente para que ficassem só familiares aqui dentro. Ele foi de porta em porta, de casa em casa – não só ele, como os brigadistas, junto com as outras lideranças, e conseguiram deixar só os familiares mesmo aqui.

João Gleidson – O meu nome é Gleidson Kuarasaiaqua, sou liderança jovem aqui do povo Anacé, sou estudante, sou universitário. Um dos grandes baques desta pandemia, além das várias limitações, é o “novo normal”, como a gente costuma falar, em que nós deixamos a nossa área de conforto. Houve um período em que a gente não podia sair nem na rua. Um dos grandes impactos da Covid-19 na minha família e no povo Anacé foi a perda do meu pai, a liderança Cleilson Anacé. Como a minha madrasta falou, [a Covid-19] não escolhe classe social, não escolhe quem vai pegar, quem são essas pessoas. Não sabemos a gravidade, então pode pegar em qualquer um e qualquer um pode partir. A gente viu que, do mais velho ao mais novo foi impactado por esse vírus, do mais rico ao mais pobre, nas comunidades mais isoladas e mais expostas. 

O movimento [anacé] tem quase a minha idade, ele tem 21 anos e eu estou com 20. O meu pai afirmou o que eu tenho que fazer dentro do meu povo. Eu estou lá fora adquirindo o conhecimento do branco, mas eu tenho que voltar aqui para dentro e mostrar para o meu povo o meu conhecimento e seguir como liderança, que não é um papel fácil. Meu pai deixou esse legado, de dizer que eu devo lutar pelo meu povo, pelo direito do meu povo. Esse é um legado que ele deixou para mim, enquanto jovem indígena. Se eu sou a pessoa que sou hoje, eu devo a ele, ele me ensinou tudo que eu sou, tudo que eu sei. E hoje estar aqui, vendo as fotografias dele aqui, dos momentos, vem aquele filme de lembranças. O legado que hoje fica aqui é que eu devo lutar pelo direito do nosso povo. Se hoje estamos aqui na TI Taba dos Anacés, nas nossas casas, vivendo próximos, podendo mostrar as nossas manifestações culturais, tendo essa possibilidade de viver a nossa cultura, viver como povo Anacé, viver essa identidade, então, nós, Anacé, perpetuaremos nossa cultura. 

Eu acredito que esta pandemia, por mais severa que seja, no mundo todo, nos ensinou a enxergar a vida com um outro olhar. Nós vemos que esses números que hoje estão aqui no país, de morte, não são números, são pessoas, são famílias. Então, a gente aprendeu a valorizar mais o que é a vida e qual o sentido da vida. Será que olhamos o próximo com vida mesmo? Esses números que foram levados não são apenas números, são famílias, são histórias construídas. Então, hoje eu acredito que, depois disso, dessa experiência que não foi nada leve, a gente possa olhar a vida com um outro sentido, não só a nossa vida, mas também a vida do próximo.

Josenir – Por mais que essa pandemia tenha juntado muito as famílias, isso já era um legado que nós tínhamos. Sempre tivemos essa harmonia, essa união. Então, foi muito dolorosa a perda do Cleilson, porque, na hora, a família não podia estar próxima, por mais perto que estivesse.
João – Esse período foi muito difícil para nós, indígenas. Acho que sinalizou muito a situação das políticas indígenas e indigenistas deste país. O que aconteceu com nossos parentes no Amazonas, por exemplo, no Alto Xingu… Ver muitas lideranças e parentes morrendo, culturas e livros vivos… Isso mostra muito qual é a situação das políticas indigenistas hoje no Brasil, e só reafirma o quanto de luta precisamos ainda. Nós lutamos não é pouco… E também [reafirmou a importância da] ocupação dos espaços indígenas em diferentes âmbitos, e deu um norte, de sabermos lutar.

Rute Morais Souza

Rute Morais Souza nasceu em 25 de julho de 1997, em Fortaleza (Ceará). É indígena do povo Anacé de Caucaia. Atualmente, é mestranda em Antropologia Iberoamericana na Universidade de Salamanca, na Espanha. Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), em sua pesquisa de monografia, estudou a situação do território indígena anacé. É membro da Associação Brasileira de Indígenas Antropóloges (ABIA). Nos anos de 2017 e 2018, foi discente voluntária de iniciação científica no Projeto Mapeamento dos Relatórios de Identificação de Territórios Quilombolas (1988 a 2016). É integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas Étnicas (GETE), da Universidade Federal do Ceará (UFC).